Então quer dizer que Donald Trump vai deportar milhões de imigrantes, anexar o Canadá, invadir a Groenlândia e impor tarifas alfandegárias em vários países, gerando caos mundo afora?
Será que essa leitura está correta?
Deixando a histeria das manchetes de lado, precisamos projetar o segundo mandato de Donald Trump com a seriedade que o assunto merece.
Neste artigo, vou trazer algumas reflexões pragmáticas sobre o que realmente podemos esperar desse segundo mandato de Donald Trump, analisando especialmente os impactos na economia, minha especialidade.
Um ponto de partida para analisar o segundo mandato de Trump
A verdade é que o segundo governo Trump tem o potencial de ser bem melhor do que o primeiro, por uma série de fatores.
Em primeiro lugar, ele já foi presidente e, portanto, conhece e sabe como funciona o “pântano político”.
Em segundo, ele não precisa se preocupar com reeleição.
Em terceiro, há uma grande decepção com o governo Biden, o fracasso das políticas democratas mais radicais e até a frustração de alguns democratas, que mudaram o seu apoio e passaram a se aliar a Trump.
Por fim, Trump controla o Congresso, tem maioria no Senado e na Câmara, e conta com uma base de apoio popular, mas sobretudo empresarial, que não tinha no primeiro mandato.
Preste atenção nesse aspecto, porque muita gente subestima o valor disso.
Se você parar para ler as notícias, verá que muitos analistas estão mais preocupados com as falas exageradas de Trump e com as manchetes sensacionalistas.
No entanto, isso é, mais do que tudo, uma estratégia de retórica e persuasão do Trump.
E ele está repetindo o mesmo manual que usou no primeiro mandato.
Ao longo do artigo, você vai entender o outro lado: o que está por trás da forte expectativa positiva e da onda de otimismo com o governo de Trump.
Se preferir, te convido a assistir meu vídeo recente sobre o assunto:
E, para começar, o primeiro aspecto não poderia ser outro:
A reversão de políticas radicais do governo Biden
Primeiro, temos a política energética.
Petróleo e gás em alta
A chamada “agenda verde” minou a competitividade americana, inviabilizando alguns setores, especialmente os de combustíveis fósseis.
Antes da posse, tivemos o testemunho de vários dos secretários de Trump, que vão assumir pastas importantes nas audiências de confirmação no Senado americano.
Por exemplo, Chris Wright, que será o Secretário de Energia, destacou que sua prioridade é aumentar a produção energética nos Estados Unidos, focando em gás natural liquefeito e energia nuclear.
Ele ainda afirmou que combustíveis fósseis e o setor de petróleo e gás são chave para acabar com a pobreza no mundo.
Então, é uma mudança radical em relação ao que vimos na outra administração, além do reconhecimento de que é, sim, importante fomentar investimentos nesses setores.
Isso está alinhado com a máxima que Trump defende há muito tempo: drill, baby, drill (“perfure, baby, perfure”), algo que Biden inviabilizou ou até boicotou durante o seu mandato.
DEI em baixa
Outro ponto é o declínio das práticas de DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão), cujos resultados são amplamente questionados nos Estados Unidos.
Algumas empresas já estão se antecipando e abandonando essas políticas.
O melhor exemplo é o da Meta, liderada por Mark Zuckerberg, que anunciou que está deixando essas práticas para trás.
Um novo olhar para a liberdade de expressão
E, por fim, neste início de reversão de políticas, temos a questão da liberdade de expressão — incluindo a perseguição ao debate e à divergência de opinião política, que ocorreram amplamente durante o governo Biden.
Como foi muito divulgado nos últimos meses, isso aconteceu em várias redes sociais e empresas de tecnologia, que foram pressionadas até mesmo pelo governo americano ou por outras agências, para suprimir discursos e diminuir o alcance de algumas figuras mais influentes da direita ou de setores mais conservadores.
Enfim, isso também está mudando.
As empresas de tecnologia e redes sociais estão começando a apoiar esse movimento. Mas vamos analisar mais sobre as big techs no fim do artigo.
A audaciosa política externa de Trump
E o que esperar da política externa de Trump?
Essa é uma agenda em que eu tenho boas expectativas. Desde que venceu as eleições, em novembro, ele anunciou metas ousadas.
Como, por exemplo, a de que o Hamas liberasse todos os reféns israelenses até o dia de sua posse.
Curiosamente, na semana anterior à posse, um acordo foi finalmente alcançado.
No dia 17 de janeiro, o premier de Israel, Benjamin Netanyahu, confirmou que o acordo de cessar-fogo foi concluído.
Surpreendentemente, o acordo já estava sobre a mesa meses atrás, mas Israel recusou anteriormente.
E não foi Biden quem conseguiu isso: foi Trump, por meio do enviado especial Steve Witkoff. Essa já é uma grande vitória para começar seu segundo mandato.
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A guerra comercial: o que é fato e o que é ferramenta de negociação?
É claro que precisamos falar da guerra tarifária, a guerra comercial, porque esse é o tema que mais ganha manchetes, e é a principal arma de negociação e dissuasão que Trump usa constantemente.
Eu já perdi a conta de quantos países foram ameaçados por algum tipo de tarifa.
Mas é preciso entender o que ele realmente quer com essas políticas: se ele realmente quer impor tarifas, se é uma prática que ele acredita piamente que faz bem para os Estados Unidos, ou se é mais uma ferramenta de negociação.
Muitos dirão que Trump não passa de um mercantilista protecionista.
Talvez até seja.
Talvez tenha um viés, um vício de protecionismo e nacionalismo. Não duvido disso.
Mas, ao mesmo tempo, ele já falou algumas vezes — isso durante o primeiro mandato — que, se os demais países removessem as suas barreiras comerciais, reduzissem ou zerassem tarifas, ele estaria mais do que disposto a fazer o mesmo.
Então, ele defende também um comércio livre e amplo.
Mas, se alguns não praticam essas políticas, pelo contrário, seguem outras regras e também erguem barreiras, bom, aí os Estados Unidos têm que fazer o mesmo.
Essa tem sido a sua queixa. E, claro, ele usa, sim, as tarifas como um porrete o tempo inteiro, mas muito mais como uma arma de ameaça.
Ainda é difícil saber que tarifas realmente serão impostas, se isso vai ir adiante e contra quais países.
Mas é claro que ele quer fomentar o comércio global e diminuir o profundo déficit comercial dos Estados Unidos.
Talvez, por essa ótica, a gente possa chamar Trump, sim, de mercantilista. Mas aí tem a ver com questões mais complexas, como o próprio padrão dólar, que não é o objetivo do artigo de hoje.
A arte da persuasão de um dos melhores negociadores do mundo
E quando Trump fala que vai deportar milhões de imigrantes ilegais, ou tornar o Canadá o 51º estado americano, ou quando diz que não descarta intervenção militar na Groenlândia… será que ele realmente quer fazer isso?
Honestamente, acredito que não, que não sejam os objetivos reais de Trump.
Mas é aí que a gente precisa entender a cabeça dele e interpretar essas falas, que muitas vezes soam, sim, absurdas.
O que ele está fazendo é usar uma técnica de persuasão.
Trump é um mestre na arte de persuasão, e, quando diz esse tipo de coisa, o que ele está fazendo é chamar a atenção de todos para a questão fundamental.
Ao dizer coisas que soam loucas, ele está ancorando uma meta ousada, absurda ou até mesmo estúpida.
E, com isso, ele muda o foco de atenção de todo mundo, que fica vidrado naquele tema, tentando entrar nos mínimos detalhes e apontar as idiotices que ele disse: que não é possível construir um muro no México, etc.
Mas, enquanto isso acontece, ele já alcançou o seu objetivo, que era moldar e dominar o debate público em torno da questão fundamental.
No caso do muro, a questão era a imigração e a fronteira com o México.
É assim que ele consegue chamar e prender a atenção de todos.
E, no próprio caso do muro, que seria construído ao longo de toda a fronteira entre México e Estados Unidos, se a gente olhar os dados, não se construiu quase nada.
Porque o foco, em si, não era construir o muro, mas lidar com a imigração ilegal.
Por sinal, ele já falava, em 2016, em deportar milhões de imigrantes ilegais.
E, quando assumiu, foi atrás daqueles imigrantes ilegais que praticaram crimes nos Estados Unidos.
É bem provável que ele faça o mesmo agora, nesse segundo mandato.
Então, a questão principal é, sim, a imigração, e não construir o muro.
No caso do Canadá, talvez seja a questão do déficit comercial, mas não que ele pense em anexar o Canadá. Ou talvez invadir a Groenlândia para dominar os recursos naturais da ilha. Não acho que seja o caso.
Para mim, faz tudo parte da sua estratégia de chamar atenção para o debate e alcançar o que ele realmente está buscando.
Como ele fala no seu livro A Arte da Negociação, em que começa pedindo algo absurdo para, depois, se encontrar no meio do caminho e conseguir o que realmente estava buscando desde o início.
E eu preciso dar os devidos créditos a esse insight, que veio por meio da leitura do livro Win Bigly, do Scott Adams, autor daquelas tirinhas Dilbert.
Ele foi uma das poucas personalidades que previram a eleição do Trump lá em 2016, e explica, com uma riqueza de detalhes e fundamentação, como Trump usa a persuasão para conseguir o que quer, a começar pela presidência dos Estados Unidos.
Aqui um obrigado ao meu grande amigo Fábio Mota, da Dal Capital, que me indicou essa leitura.
O desafio fiscal e o inimigo em comum
É o fiscal um dos maiores desafios nesse segundo mandato de Trump, que já herda um governo com um déficit que supera US$ 2 trilhões e um endividamento público de mais de 120% da economia americana.
O indicado para a Secretaria do Tesouro é Scott Bessent, um investidor americano renomado, que trabalhou com Stanley Druckenmiller e George Soros.
Ou seja, alguém do meio empresarial, que domina as finanças públicas.
Na sua audiência de confirmação no Senado americano, ele já falou que defende a extensão dos cortes de impostos de Trump, feitos no primeiro mandato, e mais: que eles se tornem permanentes.
Segundo ele, será um desastre para a economia americana se isso não acontecer, e eu tendo a concordar.
Mas, se ele não vai fechar o buraco fiscal pelo lado da receita, ele vai precisar fazer isso pelo lado da despesa.
Só que o orçamento público americano também é bastante engessado.
A Seguridade Social e o Medicare, programa de saúde pública para os mais velhos, são despesas obrigatórias e, para reformá-las, seria necessária uma batalha enorme.
Scott já começou dizendo que não vai tocar no Medicare, que é o programa de saúde pública para pessoas de baixa renda.
É um pouquinho mais fácil, mas ele também disse que não é o foco. Então, ele quer atacar o problema do gasto público elevado reduzindo as despesas discricionárias domésticas.
Portanto, na defesa, ele também não deve tocar.
Mas como ele vai reduzir custos para resolver o problema fiscal?
O papel de Elon Musk no Governo Trump
E é aí que entra, talvez, o coelho da cartola de Trump: o DOGE (Department of Government Efficiency), liderado por ninguém menos que Elon Musk, CEO da Tesla e um dos homens mais ricos do mundo.
Mas por que isso seria um coelho da cartola? E por que há tanto otimismo e expectativa de que esse departamento, que não faz parte do governo — é uma agência de fora, sem nenhum poder legal, funcionando mais como um órgão consultivo —, consiga fazer algo?
Primeiro, porque é o próprio Musk quem está liderando essa iniciativa.
E, se tem algo que eu aprendi sobre ele, pela sua biografia, é que Musk é obcecado por resultados.
Ele é obstinado em alcançar os seus objetivos. Se ele realmente se dedicar de corpo e alma ao DOGE, eles podem conseguir muita coisa.
O segundo ponto é que eles estão recrutando muita gente de mercado, muita gente da iniciativa privada, com conhecimento em corte de gastos e análise, com uma capacidade analítica impressionante, experiência e vontade de ajudar.
A maior parte dos envolvidos são voluntários, e isso é muito importante.
Apenas pela via administrativa, há muita gordura para cortar em nível federal.
Existem mais de 400 ou quase 500 agências independentes, que gastam um orçamento bem significativo.
Ninguém sabe dizer ao certo quantas agências existem, mas, com milhões de funcionários, é evidente que há muito o que pode ser feito.
Claro, não será o DOGE que fará essas mudanças diretamente, mas sim recomendará, embasará e indicará as ações. A implementação será colocada em prática pelas secretarias e pelo próprio Trump.
Portanto, há um esforço conjunto, envolvendo a iniciativa privada, para conseguir cortar despesas públicas.
Na minha visão, acho que muita coisa pode ser realizada nesse sentido.
Será suficiente para zerar o déficit americano de US$ 2 trilhões? Talvez não.
Mas, se conseguirem mudar a direção e mostrar que há, sim, um enorme potencial de redução de gastos, já será um feito e tanto.
Silicon Valley e o Governo Trump: novos amigos?
E isso me leva ao ponto final: o apoio empresarial que hoje Trump tem, e que praticamente não tinha no seu primeiro mandato.
Podemos dizer que o Vale do Silício hoje é uma base não apenas de apoio, mas até de formação do governo de Trump.
Muita gente está sendo indicada para postos-chave no governo, saindo de empresas de tecnologia e de fundos de venture capital. São pessoas com enorme capacidade de entrega de resultados, focadas na missão que têm diante de si.
Nomes como Elon Musk, que já foi fundamental para a vitória histórica de Trump nas eleições, Peter Thiel, Mark Zuckerberg — que se tornou um aliado recente — e até mesmo Jeff Bezos.
E, por sinal, Musk, Bezos e Zuckerberg estavam na posse de Trump no dia 20.
Então, sim, Silicon Valley está agora apoiando Trump.
Para inteligência artificial, criptos e Bitcoin, teremos ninguém menos que David Sacks, que também faz parte da “máfia do PayPal”, como Peter Thiel e o próprio Elon Musk.
Sacks foi intitulado o czar da regulação de inteligência artificial e cripto. Ele será o responsável por propor regulações para esse setor, que também foi um foco de campanha de Trump.
Trump, que se tornou alguém mais pró-Bitcoin e pró-cripto, gerou até mesmo a expectativa de que possa constituir uma reserva estratégica de Bitcoin.
Mas o fato é que hoje há um otimismo em torno da regulação para essa área e para o setor de tecnologia como um todo.
Antes de finalizar, eu preciso citar também Marc Andreessen, um dos veteranos de venture capital do Vale do Silício, fundador da empresa Andreessen Horowitz e, na época do início da internet comercial, criador do navegador Netscape Navigator.
Ele conhece profundamente o mundo da tecnologia e, ao longo de sua vida empresarial, quase sempre apoiou administrações democratas para eleições presidenciais.
Recentemente, ele se tornou um apoiador de Trump. Mas não apenas um apoiador: ele se autointitula um “estagiário não pago”, porque, nos bastidores, tem sido uma das figuras mais importantes para recrutar pessoas tanto para o DOGE quanto para outros cargos-chave no governo de Trump.
Em uma entrevista que ele deu recentemente para Peter Robinson, do Hoover Institution, que faz parte do campus de Stanford, ficou claro o impacto desse movimento.
É impressionante o que pode ser feito, e daí vem muito do otimismo que tem sido gerado até mesmo no meio empresarial, no Vale do Silício, e, eu diria, na iniciativa privada como um todo hoje, no segundo mandato de Trump.
Vale lembrar que o próprio presidente não é um político de carreira.
Na verdade, ele é um empresário de sucesso e está se rodeando de pessoas do meio empresarial, da iniciativa privada, e agora também com ajuda do Vale do Silício.
Isso é um ativo enorme e que muita gente subestima, especialmente no que diz respeito a regulações, cortes de gastos públicos e, particularmente, à diminuição da burocracia.
Esse movimento pode dinamizar a economia americana e, talvez, provocar um novo ciclo de crescimento, um novo ciclo de prosperidade.
E, de repente, neste segundo mandato, Trump talvez consiga finalmente fazer a América grande novamente.